quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Noções

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

Cecília Meireles

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Conto da bailarina sem cabeça. (conto teatral para ser encenado e lido simultaneamente, sem necessidade de audiência)

Personagens:

Isabela – 6 anos e meio

Mãe.


Mamãe, mamãe! Olha só o meu desenho!( com empolgação típica infantil)

Ah!(sem nem olhar para o desenho. Comportamento não maldoso, mas típico da mãe moderna-mulher-trabalhadora,que realmente não tem tempo de analisar o quinquagésimo nono desenho que a filha lhe mostra em uma semana. Sabe aquela fase em que eles passam o dia desenhando?Então...Sendo assim,e por ser sua filha, é claro que todo desenho será lindo)Que lin...(pausa-medo-susto)O que significa isso?!Hein?!

Ué mamãe é a bailarina!( com um sorriso sarcástico infantil como que denunciando que fez coisa errada, mas sabendo que por ser criança pode aproveitar-se do fato de todo erro ser acerto, e de que sua lógica não necessariamente, quer dizer, com certeza não é a mesma dos adultos)

Sem cabeça Isabela! Sem cabeça?!( com ar de superioridade maternal, pensando “que bonitinha! Esqueceu a cabeça!deixa a mamãe te ensinar com é que se faz” ) Não existe bailarina sem cabeça filha...O corpo não pode estar vivo, dançar se não tiver cabeça.( Com doçura maternal, tentando simplificar ao máximo a explicação, mas conservando um ar de mestre oriental que treina seu discípulo ainda ignorante)

E quem disse que ela não tem cabeça?( paciente e triunfante,sabendo que virará o jogo)

Você não desenhou a cabeça aqui filha...(Com ar de falsa-modestia de uma professora de alfabetização para adultos)

Não desenhei, mas ela tem cabeça ué...só não desenhei mamãe...isso não quer dizer que ela não tem.( com ar de desdém, meio blasé, como se aquilo fosse muito óbvio)

Como assim filha?( Confusa e pega de surpresa pela resposta da filha)

É só um desenho, se eu desenhasse a cabeça você não ia prestar atenção no mais importante que são os pés,as pernas, o corpo. Alias você não ia nem prestar atenção no desenho em si, ia dizer que tá lindo como você sempre fala. Então achei por bem utilizar-me de tal representação gráfica para enfatizar o que, para mim, mais tem importância na idéia explicitada, que é o ser em movimento, no caso a bailarina. Acho também que a cabeça é muito limitadora, o racionalismo extremo é inimigo da expressão corporal plena, sendo assim, optei por criticar o sistema no qual estamos inseridos, que nos propicia nada mais do que um massacre corpo-expressional, hiper-estimando um mente constantemente reprimida e sobrecarregada, que faz com que deixemos de lado a importância da pausa, do tempo para si e do movimento. Sendo assim nos tornamos escravos de nossas mentes, robotizando-nos, esquecendo-nos de sentir, esquecendo-nos que temos um corpo. Mamãe, você já parou pra sentir suas articulações, seus dedões dos pés, seus ouvidos? Não, eu sei que não...Ai,ai, é uma pena. Bom, deixa eu parar de perder tempo com conversinhas e ir tratar do que interessa, desenhar de giz de cera nas paredes da casa, rodar até cair no chão, correr, rir muito, conversar com meus amigos imaginários e exercitar meus cinco sentidos ao extremo enquanto ainda posso experimentar o mundo sem pudores ou medos.

Sai

Nota da autora: Ah! Essas crianças de hoje em dia!

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Asas de papelão- rascunho- parte 1

Vem cá! Vamos, vamos! Traz a cola tá ? A tesoura e papelão eu tenho aqui!
Vem, me dá a mão, deixa que eu te ensino! Ou é você quem me ensina...Ahn? Não!
Dá isso aqui! É, é, você tá certa e pra cá mesmo... Agora vira... E agora? Você sabe né, eu sei... Parece até que a gente já... deixa pra lá vai! Não, não! Deixa! Tá! Tá bom, eu falo! Parece até que a gente já se conhece de outras vidas sei lá...Sabe quando...
( pausa- olha pra ela)
Parece que posso segurar a lua com minhas próprias mãos, vejo flores aonde não tem e...Ué! Quem foi que ascendeu a luz do mundo desse jeito!? Quantas cores lindas! Onde fica esse interruptor? O que é isso? E um...Meu Deus! Eu posso enxergar a luz, e como as ondas tem vida própria! Quem foi que pintou o céu assim? Onde foi que você encontrou tanta vida? As montanhas elas...elas...que caixa foi essa que você abriu?
(risos,risos,risos)
É eu sei! Eu faço perguntas demais, é que eu nunca vi nada assim, senti nada assim, não sei! Não sei nem explicar eu... O que posso dizer, ou melhor o que se diz quando se fica tanto tempo assim com os pés descalços? Com os pés descalços e fora do chão assim?
Vêm, vêm cá você agora! Me dá sua mão! Isso, agora fecha os olhos! Assim não né! Fecha mesmo, de verdade, deixa eu ver...Isso! Agora assim, me dá a outra mão, as duas! Assim, isso, tá chegando, tá chegando...É sim, a gente tá andando em círculos mesmo. Calma, você vai ver! Pronto, pode abrir...Pois é! Enquanto conversavamos, quer dizer, enquanto eu falava muito, elas ficaram prontas...E aí vamos? Eu queria, mas se você não quiser, a gente não preci...Sim? Você disse sim? Então vamos! Calcemos então nossos asas de papelão, elas, e somente elas, e eu e você.