sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O melodioso canto do grilo encarcerado

Toda a minha ludicidade livre do grilo cantor vem sendo achincalhada pelas sandálias de chumbo vestidas nos pés de um enorme gigante. Para fugir de sua mortífera pisada acabei me travestindo de formiga, com uma incomoda e ridícula fantasia um número menor do que eu (era a única que tinha). 
As formigas são mais organizadas, trabalhadoras, traçam planos, conquistam metas, constroem algo palpável, e se esquivam da dança frenética do gigante, agindo como se ele nem existisse, tamanho o perfeito balé que tramaram ancestralmente para esquecerem-se da revigorante dança da morte. Seus ouvidos blindados mal escutam o enorme ruído das sandálias de chumbo. 
Mesmo travestida de formiga exemplar, eu ainda tremo quando os pés de chumbo tocam o chão, e até fico aliviada ao ouvir que o som de suas pesadas e melodiosas batidas ainda estão lá. Nos dois minutos de descanso que tenho por dia (as formigas são incansáveis e perfeitas trabalhadoras exemplares, afinal todo império tem seu preço, né?) ponho minhas patinhas de fora para lembrar do meu verde que tem se tornado tão raro que mal consigo enxerga-lo direito, como um daltonismo a longo prazo (a vida de formiga é sempre tão marrom), e ameaço mexe-las ao som do melodioso batuque, outrora assustador e que hoje me chama para dançar, mas não! Já é hora de voltar para a marcha impecável dos batalhões de formigas sistemáticas. O que existirá para além das sandálias de chumbo? E seu eu fugisse? As formigas certamente notariam, em seu sistema perfeito cada peça é fundamental, e cada grilo que ousa mostrar seu verde é pisoteado pela dança da morte, é posto alí, como uma oferenda e um exemplo para as pseudo-formigas de perninhas verdes. Dentro da roupinha marrom, meu corpo de grilo foi desfigurado para se adequar a ela que tanto me aperta(até hoje), meu pulmão foi comprimindo, a respiração tornou-se curta mas a alma parece ainda querer fugir para dançar o seu vivo verde em campos mais férteis. 

Ah! 

Sem perceber estou dançando em meio a marrom disciplina militar, as trabalhadoras incansáveis assustam-se, e por um precioso minuto param para olhar para minha desengonçada dança, absortas. De olhos fechados sigo dançando em direção ao batuque de chumbo e vou compondo um belíssimo pas de deux com os enormes pés prateados, as formigas soltam um grito abafado de medo e fascinação, enquanto a minha fantasia de formiga vai aos poucos rasgando e se desprendendo do meu corpo desfomre, não tenho mais como fugir, revelei meu verde dançante enfim, e abro os olhos com tamanha felicidade de libertado que me desequilibro e caio de cara no chão. 

Silêncio. 

Levanto-me lentamente e percebo que passei os pés dançantes, eufórica viro o rosto para o lado de lá, para o novo destino, e! 

Deserto. 

A minha frente só areia fina e um grande Sol escaldante sob minha cabeça. Respiro fundo, fecho os olhos e recomeço a minha dança frenética, agora ao som do meu próprio batuque. Resta agora esperar. Vamos ver onde meus pezinhos verdes vão me levar. 

(Vento)